Cuidados Paliativos: Para que e para quem servem?

Cuidados Paliativos

Em um momento no qual a pandemia da Covid-19 mobiliza todo o mundo, por que publicar um texto a respeito de cuidados paliativos? Em primeiro lugar, os pacientes que recebem cuidados paliativos fazem parte do grupo de risco para o novo vírus (Neiva, 2020a). E, mais amplamente, a Organização Mundial de Saúde (World Health Organization, WHO, 2018) publicou normas que defendem a necessidade de aplicação dos conceitos e estratégias dos cuidados paliativos em crises humanitárias, como a que enfrentamos atualmente (Neiva, 2020b).

Crises humanitárias são, segundo a WHO (2018), “eventos de grandes proporções que afetam populações ou sociedade, causando consequências difíceis e angustiantes como a perda maciça de vidas, interrupção dos meios de subsistência, colapso da sociedade, deslocamento forçado e ainda graves impactos políticos, econômicos com efeitos sociais, psicológicos e espirituais” (traduzido por Neiva, 2020b). Qual seria a relação disso com cuidados paliativos, reconhecidos como aqueles prestados a pacientes com doenças já socialmente conhecidas (como câncer ou doenças crônico-degenerativas), sem tratamento curativo, em fim de vida? A ligação é, justamente, a necessidade de uma equipe multiprofissional que atue no alívio de sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais, proporcionando o máximo de qualidade de vida ao paciente e à sua família. Integrar os cuidados paliativos a um tratamento significa promover um cuidado mais ético e mais eficiente, já que se trata de uma abordagem mais integral e humanitária (Arantes, 2016).

Nesse sentido, a integração de uma equipe ou, ao menos, de um profissional paliativista pode contribuir no planejamento do tratamento hospitalar, ambulatorial ou domiciliar dos pacientes de Covid-19 (ou de outras doenças graves e que produzem sofrimento no paciente e em sua família). Além disso, torna-se necessária, muitas vezes, assistência psicológica à família, em casos de lutos complicados, tendo em vista que muitos não podem se despedir de seus entes queridos devido à alta taxa de contágio da doença e, por isso, os caixões fechados e a ausência de velórios.

Temos visto muitas críticas à forma com que algumas pessoas vêm tratando as medidas de proteção adotadas pelo governo (e.g., distanciamento social) e as mortes ocorridas pela Covid-19. Faz parte de nosso trabalho, como psicólogos, resgatar o respeito às normas de saúde e à dignidade das pessoas doentes e de seus familiares. Conforme Neiva (2020a), “Nessa crise temos o desafio de trabalhar em comunidade e mostrar que as pessoas têm valor”.

Definir cuidados paliativos permitirá um melhor entendimento, por parte de você, leitor, de tudo o que foi dito até agora.

Cuidados Paliativos

Evoluções científicas, tecnológicas e de condições sanitárias têm ocasionado diminuição de mortes por doenças antes corriqueiras, com consequente envelhecimento populacional. Com isso, doenças crônico-degenerativas têm se tornado mais frequentes, exigindo mudanças na formação e atuação dos diferentes profissionais de saúde. Os cuidados paliativos, uma das áreas de saúde atualmente em destaque, são definidos como:

“atenção total e ativa promovida por equipe multidisciplinar com o objetivo de melhorar a qualidade de vida, tanto do paciente quanto de seus familiares, diante de uma doença crônico-degenerativa que não responde a tratamento curativo. A assistência integral em cuidados paliativos deve envolver tanto a prevenção e o alívio do sofrimento quanto a identificação precoce, a avaliação e o tratamento de dor e dos demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais. Abrange diferentes propostas: atendimento domiciliar, ambulatorial ou hospitalar. O paradigma dos cuidados paliativos é o cuidado e não a cura (Ministério da Saúde, 2013; Rodrigues, 2004). A definição proposta pelo INCA (2002) destaca, portanto, que a terapêutica paliativa não tem função curativa, de prolongamento ou de abreviação da sobrevida” (Nery & Fonseca, 2016/2019, pp. 343-344, grifos adicionados).

Vamos aos termos grifados. Os cuidados paliativos exigem que a equipe atue mais diretamente, prevendo e prevenindo problemas que podem ser originados pela doença ou por seu tratamento. Não se espera que o sintoma apareça. Isso exige conhecimento da doença, dos efeitos iatrogênicos (problemas ou prejuízos resultantes do próprio tratamento, tais como efeitos colaterais de medicações) e, tanto quanto possível, do funcionamento daquele organismo em particular. Portanto, a equipe deve ser treinada a reconhecer os sinais e sintomas típicos e a buscar por indícios de que algo de errado possa estar começando a ocorrer com aquele paciente em especial (mesmo que, para isso, precise recorrer ao médico especialista naquela doença). Além disso, o paciente é visto como um todo, com todas as suas especificidades, e não apenas como portador de uma (ou algumas) doença(s) específica(s). Disso decorre a necessidade de interação entre múltiplos profissionais, que têm olhares sobre aspectos distintos do ser humano. Quanto mais esses olhares se focam no indivíduo e em seu processo, quanto mais esses olhares se trocam entre os membros da equipe, mais complexo e efetivo é o tratamento.

Dentre os profissionais de uma equipe multiprofissional de cuidados paliativos, podem-se citar: médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, assistentes sociais, auxiliares/técnicos de enfermagem, psicólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas, cirurgiões-dentistas, farmacêuticos e terapeutas ocupacionais.

Os paliativistas não trabalham com tratamentos curativos, como pôde ser visto na definição exposta acima. Entretanto, cada vez mais, defende-se que a intervenção paliativista comece o mais cedo possível, a fim de aliviar sintomas, promover a autonomia, a independência e a identidade do paciente. Nesse sentido, atualmente, os cuidados paliativos podem, e devem, ocorrer concomitantemente a um tratamento curativo. Se possível, devem ser iniciados no momento do diagnóstico de uma doença que ameaça a vida. Isso possibilitará maior acolhimento e prevenção de problemas em diversas áreas da vida do paciente e de sua família (Associação Nacional de Cuidados Paliativos, ANCP, 2013; Coutinho, Carvalho, & Costa Junior, 2019).

Vale ressaltar que, mesmo que o paciente esteja em tratamento com especialistas que buscam a cura da doença, o objetivo dos cuidados paliativos é o de promover bem-estar, melhorar a qualidade de vida do paciente e daqueles que os rodeiam. A ideia é de que receber o diagnóstico de uma doença que limita ou ameaça a vida abala tanto o paciente quanto seus familiares, cuidadores (que podem ser membros da família ou não) e amigos. Essas pessoas merecem participar do tratamento, e se tornam, na medida do possível, coterapeutas. Obviamente, só o paciente sabe o que realmente sente ao descobrir um diagnóstico difícil, uma doença que ameaça a vida ou a proximidade da finitude. Cada pessoa envolvida vivenciará isso de uma maneira específica. No entanto, ter alguém importante por perto pode aliviar o sofrimento. Cabe à equipe promover a relação entre paciente e cuidador(es) e, também cuidar de quem cuida, prevenindo sua sobrecarga física e emocional (ANCP, 2013; Carvalho, 2019).

Segundo a ANCP (2013, p. 22), “o desconhecido nos tira o fôlego, o foco, a esperança”. Precisamos ajudar nossos pacientes e seus familiares a recuperarem tudo isso, a fim de conseguirem lidar com um tratamento curativo difícil e/ou com a impossibilidade de cura. Uma equipe bem preparada:

  • oferecerá conhecimentos sobre a doença, seu tratamento e seu prognóstico. A comunicação clara e com informações reais prepara paciente e família para tudo o que virá;
  • trará alívio à dor total do paciente (que se refere a sintomas físicos, sociais, emocionais e espirituais);
  • promoverá autoconhecimento, autocontrole e autoconfiança. Uma pessoa que conhece seus pontos fortes e fracos pode lidar melhor com os problemas e se preparar para o futuro;
  • desenvolverá estratégias de adesão a tratamento e de comunicação com familiares e cuidadores;
  • estimulará a expressão de sentimentos, reparações de relações, pedidos de perdão e discussões sobre o sentido da doença e, principalmente, da vida (essas questões são relacionadas ao que se denomina sintomas espirituais). Isso permitirá maior conexão do paciente com os outros e consigo mesmo, transformando seus dias em momentos com mais significado; e
  • trabalhará os sentimentos de todos com relação à doença e à morte, prevenindo lutos complicados.

Por fim, deve-se deixar claro que os paliativistas defendem que a morte ocorra a seu tempo, com intervenções que promovam alívio do sofrimento, mas que não acelerem a morte e que nem prolonguem artificialmente a vida. Em outras palavras, são contrários à eutanásia (abreviação deliberada da vida) e à distanásia ou obstinação terapêutica (prolongamento da vida, a partir da utilização de métodos artificiais ou cirurgias desnecessárias, por exemplo).

As escolhas e os valores do paciente e de sua família devem ser discutidos e respeitados em todos os momentos do tratamento (Alckmin-Carvalho, & Pereira, 2019; ANCP, 2013). A doença deve seguir seu curso natural, com promoção da qualidade de vida e alívio dos sintomas, praticando-se o que se denomina “ortotanásia” (morte no tempo certo).

Cuidados Paliativos e Covid-19

Cuidados Paliativos e a Covid-19

Os cuidados paliativos defendem a dignidade da vida e a humanização do tratamento. Nesse sentido, podem contribuir de diferentes maneiras com o tratamento da Covid-19. O Editorial do periódico internacional The Lancet (2020) cita a garantia de acesso a medicamentos que realmente aliviem a dor (como opióides), a possibilidade de maior uso de telemedicina (evitando a locomoção do paciente, o que lhe garante mais conforto e menor possibilidade de contágio a outras pessoas), a discussão de planos de cuidados avançados (prevenindo sintomas e aliviando sofrimento), o fornecimento de melhor treinamento e preparação de toda a força de trabalho em saúde. Por fim, defende-se que cuidadores leigos e a comunidade em geral assumam parte do tratamento dos pacientes, assim como ocorre com os cuidados paliativos em qualquer contexto de atuação.

“Uma pandemia é uma causa e um poderoso amplificador de sofrimento, através de doenças físicas e morte, através de tensões e ansiedades, e através da instabilidade financeira e social. O alívio desse sofrimento, em todas as suas formas, precisa ser uma parte essencial da resposta” (The Lancet, 2020, tradução livre da autora). Embora, em muitos casos, a gravidade dos sintomas e a rapidez da evolução do quadro não nos permita um trabalho paliativista em sua totalidade, precisamos promover o melhor e mais amplo cuidado possível a todos os pacientes.

A Beleza de Tudo Isso

Nas palavras de Carla Ferro, filha de um paciente em cuidados paliativos: “O Cuidado Paliativo cuida da vida. Cuida da pessoa para que ela tenha a melhor qualidade de vida possível. O que justifica os Cuidados Paliativos não é a doença ou a proximidade da morte de alguém. O que justifica os Cuidados Paliativos é o fato de a pessoa estar viva” (ANCP, 2013).

E é essa a luta de qualquer profissional que escolha o paliativismo. Trabalha-se para lidar com pessoas, e não com doenças; para construir laços; para manter a qualidade de vida, e não de uma vida qualquer, mas de uma vida com sentido, com significado.

Que a morte nos encontre vivos!

Curso Online: Cuidados Paliativos: Contribuições da Análise do Comportamento

Para auxiliar você a mergulhar no mundo do conhecimento sobre cuidados paliativos, a psicóloga Ana Karina de-Farias preparou um curso online com 20h de duração. Ao longo desse curso, procurar-se-á definir cuidados paliativos (CP), sua relevância e o aumento da necessidade de profissionais que trabalhem com o tema. E, também, serão apresentados como os conceitos e estratégias da Análise do Comportamento podem ser úteis para o trabalho em equipes multiprofissionais dedicadas aos CP. 

Para saber mais sobre curso clique abaixo:

Referências

Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP, 2013). Cuidar na essência: uma conversa sobre cuidados paliativos. Dínamo Editora. Disponível em https://issuu.com/dinamoeditora/docs/cartilha_online_final

Alckmin-Carvalho, F., & Pereira, R. F. (2019). A questão dos valores frente à experiência de adoecimento e de morte: contribuições da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT). Em A. K. C. R. de-Farias (Org.), Ciências da Saúde: O trabalho de equipes multiprofissionais em diferentes contextos (pp. 381-398). Curitiba: Juruá.

Arantes, A. C. Q. (2016). A morte é um dia que vale a pena viver. Alfragide: Oficina do Livro.

Carvalho, V. V. (2019). O adoecimento do cuidador familiar do indivíduo em regime de internação domiciliar. Em A. K. C. R. de-Farias (Org.), Ciências da Saúde: O trabalho de equipes multiprofissionais em diferentes contextos (pp. 381-398). Curitiba: Juruá.

Coutinho, S. M. G., Carvalho, V. L. da S., & Costa Junior, A. L. C. (2019). Um elefante colorido: vivências de um ambulatório de cuidados paliativos. Em A. K. C. R. de-Farias (Org.), Ciências da Saúde: O trabalho de equipes multiprofissionais em diferentes contextos (pp. 381-398). Curitiba: Juruá.

Neiva, C. (2020a). Porque você importa: webinar sobre Cuidados Paliativos no contexto da Covid-19. Disponível em https://pebmed.com.br/porque-voce-importa-webinar-sobre-cuidados-paliativos-no-contexto-da-covid-19/

Neiva, C. (2020b). Por quê Cuidados Paliativos na pandemia de Covid-19? Disponível em https://pebmed.com.br/por-que-cuidados-paliativos-na-pandemia-de-covid-19/

Nery, L. B., & Fonseca, F. N. (2016/2019). “As invasões bárbaras”: o adoecimento e a morte – uma visão analítico-comportamental. Em A. K. C. R. de-Farias (Org.), Ciências da Saúde: O trabalho de equipes multiprofissionais em diferentes contextos (pp. 341-371). Curitiba: Juruá.

The Lancet (2020). Palliative care and the COVID-19 pandemic. Editorial. The Lancet, 395(10231), 1168. DOI:https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30822-9

World Health Organization (‎2018)‎. Integrating palliative care and symptom relief into responses to humanitarian emergencies and crises: a WHO guide. World Health Organization. https://apps.who.int/iris/handle/10665/274565.

Ana Karina de-Farias

Esse artigo foi produzido por Ana Karina de-Farias. Ela atua no CaMtos – Centro de Atenção Multiprofissional. Possui Graduação em Psicologia (1998) e Mestrado em Psicologia – Processos Comportamentais (2001), pela Universidade de Brasília. Atua principalmente nos temas Análise Comportamental Clínica, e Psicologia da Saúde.

Inpa – Instituto de Psicologia Aplicada, Asa Sul, Brasília – DF, Brasil.

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